domingo, 10 de setembro de 2017

Escolher viver

Em 2003 Aron Ralston, um entusiasta das escaladas e das caminhadas na Natureza deu por si numa prova de sobrevivência e resiliência inusitadas, quando numa das suas aventuras de escalada e caminhada pelas montanhas rochosas do Utah a queda duma pedra o deixou preso pelo braço, numa fissura estreita duma das rochas, apenas à espera da morte. Após cerca de 5 dias de reclusão, e já praticamente convencido de que seria ali que daria o seu último suspiro, Aron finalmente conseguiu levar a cabo a amputação do seu próprio braço e salvar-se de forma aparentemente milagrosa dum destino que parecia traçado à partida. Sobre o acontecimento, recomendo a leitura do livro "Between a Rock and a Hard Place" ou o visionamento do filme "127 hours" para melhor se perceber a magnitude da história. Mas há duas frases de Aron, quando entrevistado pelo The Telegraph acerca do evento, que me tocam particularmente:

"I felt reborn, because I was sure I was going to die" - "Senti-me renascido porque tinha a certeza de que ia morrer"
"It was traumatic, but it was a blessing to get out of there" - "Foi traumático, mas foi uma bênção sair dali"



Para que não restem dúvidas, eu não faço a mínima ideia do que é estar tão próximo da morte e conseguir lutar e resistir desta forma. Não calculo o que poderá passar pela cabeça dum indivíduo quando, preso por uma pedra de 360kg e sabendo que vai morrer, a ideia de amputar o próprio braço se afigura como a única saída possível, nem consigo sequer imaginar que um momento duma crueza tão violenta possa ter um siginificado tão impactante como um "resnascer" ou uma "bênção". Para ser honesto, não consegui sequer manter os olhos abertos durante o filme na parte mais gráfica de libertação de Aron, e senti alguma fraqueza nas pernas a cada tentativa falhada de corte das estruturas anatómicas em torno do antebraço. 

Colocadas e recolocadas as devidas distâncias, encontro em toda a história de Aron uma metáfora "quase" perfeita para o que têm sido os últimos 2, 3 anos da minha vida (especialmente o último ano e meio). 


A rocha de 360 kg

Julho de 2016: chega ao fim mais uma semana louca de trabalho, e lá vou cada vez mais vergado ao peso de tudo o que teimava (e teima) em cair sobre as nossas cabeças. A conta do banco periclitantemente a caminho dos mínimos, ainda com contas por pagar e já quase sem capacidade para fazer umas compras sem ter de contar e recontar todos os cêntimos de tudo o que pode ir para casa. "Teremos dinheiro para este fim de semana?", "Será que é desta que me aparece A carta da SS a dizer-me que me vão penhorar a conta?", "Teremos capacidade para nos manter a viver nesta casa quando o F nascer?"; foi com estas e tantas outras questões na mente que me deitei para tentar, em vão, adormecer e foi nisto que acordei a pensar noites e dias a fio. Pelo meio, tentar convencer a J de que tudo estava perfeitamente bem e que ia correr bem, e convencer os meus pais e amigos mais próximos de que não era necessário preocuparam-se em ajudar-nos uma e outra e outra e mais uma vez. Mas era e, felizmente para mim, eles sabiam disso (e disso falarei mais tarde). 

"Bater no fundo", uma expressão tão utilizada por tanta gente, não é bem a parte pior do que nos pode acontecer durante uma queda. Quando o fundo não está ainda ali, está mais abaixo mas não sabemos bem onde, é quando as coisas se complicam. Sabemos que há fundo, queremos muito lá chegar para pelo menos saber "Porreiro, pior do que isto já não pode haver!", mas acabamos enredados numa areia movediça, ali apenas com o nariz de fora que nos vai permitindo sofregamente uns tragos de oxigénio. Estar nessa areia movediça provou-se ser a parte mais complicada de gerir de todo o processo: deixar de atender chamadas de números desconhecidos, de ver o e-mail ou até ter medo de abrir a caixa do correio, porque pode ser alguém a dizer-nos que está qualquer pagamento em atraso e sabemos que assim se vai manter. Deixar de ver o saldo da conta bancária com medo de ver tornado real o descalabro a acontecer mesmo em frente aos nossos olhos. 

Estar neste fundo muda-nos, infelizmente, para pior. Tornei-me mais reactivo e menos paciente. Tornei-me algo mais duro e muito fechado. Dias houve em que senti que não dava para mais; não tenho problemas em dizê-lo, talvez pela primeira vez em público: cheguei a pensar não aguentar nem mais um dia assim. Não deixei de lutar por um segundo que fosse, mas foram inúmeras as alturas em que tudo o que mais queria era enviar tudo para o caralho, fosse lá o que isso fosse. 

Depois vem o rancor e a raiva: durante meses a fio sonhei, acordado e a dormir, em perseguir, torturar e, se possível, esbofetear sem parar para respirar os principais responsáveis por este buraco sem fim em que se tornou este espetáculo de sobrevivência a que várias gerações têm estado sujeitas nestes últimos anos. A verdade é que todos somos culpados, todos somos cúmplices do estado de coisas. Uns por irem aceitando tudo o que vai aparecendo e acontecendo, até porque não há outra solução; outros por conseguirem dormir à noite sabendo que se aproveitam do desespero das pessoas nesse sentido. Outros por calarem a boquinha e assobiarem para o ar porque a vida lhes corre bem e o problema não é deles; alguns por ainda acharem que por haver 2 casos de sucesso em milhares de tentativas, a culpa é nossa por não sermos empreendedores; de todos nós, por nos calarmos perante alarvidades como a que fizeram à J (como ela contou nos posts anteriores), mesmo sabendo que há veículos próprios para tratar esses casos. Na minha actividade profissional, devo ter tido centenas de pessoas revoltadas com a precariedade e condições de ameaça velada a que estamos sujeitos; ZERO, foi o número de pessoas que fez uma queixa a quem de direito. É muito bonito estarmos do lado certo da barricada, Calimeros a vociferar que isto é uma injustiça, mas não me recordo que a compaixão resolva seja o que caralho for. O nosso problema não são as crises financeiras; o nosso problema é mantermos o bom hábito português de continuar a olhar para o nosso umbigo quando estamos rodeados de filhos da puta, criticar os filhos da puta e criticar quem lhes ousa fazer frente. Falar muito e fazer pouco, muito pouco. Esperar que tudo apareça feito. 

Esta foi a pedra de 360 kg que durante cerca de 3 longos anos nos manteve bem presos naquele buraco fundo das montanhas rochosas. 

Naquele dia de Julho de 2016 cheguei, finalmente ao meu limite.


A amputação

"J, vou começar a preparar a papelada para irmos para França para o ano". 
Já não era a primeira vez que tinhamos esta conversa lá em casa; já antes estivemos muito perto de embarcar numa aventura por terras de Sua Majestade, e já por várias vezes nos tínhamos arrependido de não o ter feito. 
A decisão era muito simples: ficar debaixo da pedra e ir morrendo lentamente, enterrarmo-nos uns milímetros mais a cada dia que passasse, e arrastar todos os que nos são mais próximos connosco (incluindo o F); cortar o próprio braço, sair da nossa casa, do sítio onde sonhámos que iríamos construir a nossa vida e partir. Sobreviver ou viver. Escolhemos viver, ainda que para isso tenha sido necessário amputar o braço.

Recordo-me, quando começou o êxodo de profissionais de saúde para terras francesas e inglesas, de pensar estupidamente que isso talvez fosse precipitado; achei que trabalho árduo, boa capacidade técnica e boas qualidades pessoais vão sempre acabar por nos trazer alguma recompensa. Isto é válido para outros países no Mundo, que não Portugal. Vamo-nos apercebendo que para a maioria de nós, a única recompensa que pode surgir é o recnhecimento dos que tratamos e dos que connosco trabalham, dos que nos conhecem. Repetindo o que já disse acima, não me recordo que seja isso que nos coloca comida na mesa.

Sair do país foi algo que nunca me passou pela cabeça enquanto cresci, e que não mudou assim tanto mesmo com uma aventura de Erasmus ali pelo meio. Os laços que fui construindo em 30 anos dentro e mesmo ao lado da cidade do Porto sempre me deixaram com uma vontade férrea de lá passar toda uma vida. Jantar às sextas-feiras e sábados á noite no Guedes, ou na Badalhoca, ir beber um copo ali ao Piolho. Passar serões com os amigos duma vida e respectivas esposas/companheiras e igualmente amigas, ao redor duma mesa e duns bons jogos de tabuleiro. Ver os nossos filhos crescer, e a tornarem-se também amigos. Levar os meus filhos ao Dragão e passar-lhes esta saudável doença de amar sem fim um clube e uma cidade. Levá-los ao andebol, e fazê-los crescer com os valores de honra, espírito de grupo e amizade que o desporto me trouxe, pela mão do meu pai. Ir aos domingos aos almoços em casa dos meus pais, numa mesa cada vez mais cheia de netos. Estar lá presente para vivenciar os merecidos anos de reforma e descanso deles. Acompanhar a vida do meu irmão, os primeiros passos no mercado de trabalho e assistir aos jogos dele. Ter a família por perto, doida varrida, mas sempre com laços de betão. Primos, tios e avós.

Não vou poder sentir de perto os meus amigos de quase 21 anos; o meu filho vai crescer a saber quem eles são, mas eles não vão estar ali a 5 minutos de carro como estiveram quase sempre. Não sei se vou poder celebrar com eles como eles celebraram comigo a notícia de que vão ser pais. Não vou poder estar fisicamente todas as vezes que queria estar com os meus avós, tios e primos. Não sei quantos meses passarão até estar outra vez com o meu irmão. Não sei se consigo que os meus sogros possam estar tantas vezes como queríamos connosco e, especialmente, com a J e com o F. Vai fazer-me muita falta estar com os meus companheiros do andebol. O cheiro do balneário, as marcas de guerra, as jantaradas e as viagens ao cu de Judas para jogar num sábado às 21h. E as conversas com o P, possivelmente uma das únicas pessoas de quem me sinto verdadeiramente amigo, mesmo que estejamos politicamente, ideologicamente e clubisticamente em lado diferentes da "barricada". Os jantares e serões com os "padrinhos", aqueles seres maravilhosos que tivemos a sorte de conhecer. Saber como anda a vida do nosso filho adoptivo, o S. Saber se ele está bem ou se precisa duma noitada de sobrinho e de jogos de tabuleiro para libertar aquela cabeça.

E se algum dia acontece alguma coisa com algum deles? Será que a última vez que abracei os meus pais foi com a intensidade suficiente? Será que, mais do que lhes dizer, lhes fiz sentir como me sinto eternamente agradecido por tudo aquilo que eles têm feito por nós? Será que vou continuar a conseguir completar as frases do P e do M? Será que vou conseguir estar sempre lá para ajudar aquela cabeça complexa do meu irmão a perceber o valor enorme que tem? Quantas coisas ficarão por dizer, não pelas video-chamadas nem pelos facebooks, mas frente a frente? Quantos abraços ficarão por dar? 

Foi tudo isto que tivemos de aceitar cortar para seguir em frente. Foi este o braço que ficou debaixo daquela pedra. Bem sei que os tempos são outros, que as tecnologias nos aproximam, etc, etc, etc, mas isso é uma conversa espectacular para quem não passa por isso. 

Viemos e estamos bem. Estamos óptimos, como não me lembro de alguma vez termos estado. Pese embora toda a complexidade dum processo de mudança de país, dificilmente poderíamos estar melhor. Fomos recebidos principescamente pelos incansáveis C e T, temos tido no R e na D uma pequena mas sólida rede de conforto. Uns e outros têm tido connosco uma atenção e um espírito de ajuda que ficarão para sempre marcadas na nossa memória. Adaptamo-nos bem e, principalmente, o F adaptou-se lindamente. Estamos finalmente a conseguir viver sem ter a pressão dum calhau de 360kg a esmagar-nos o braço. 


Dormimos em paz. Estamos em paz. Sentimo-nos renascidos e abençoados, como Aron, por termos escolhido viver.


Mas.... falta-nos um braço!










quarta-feira, 9 de agosto de 2017

A reviravolta que mudou a nossa vida!

A última novidade deste artigo tripartido é a melhor. Aliás, é sempre de bom tom deixar o melhor para o fim!

Como revelei no artigo anterior (A reviravolta de uma vida - parte II), a nossa união deu o seu fruto em Setembro de 2016, sob a forma de um pequeno anjo! O F.
Poderia enveredar num belo texto a explicar as maravilhas da gravidez e da maternidade, mas já existem muitos (e bons) blogues que retratam essas bonitas etapas de uma vida. Então, como simples pessoa que gosta de partilhar as peripécias de um casal igual a tantos outros, vou falar dos mistérios que fui desvendado ao longo dessas duas fases.

Começo pelo princípio: pelas 37 semanas que estive em estado de graça.
ADOREI! Cada segundo, cada pontapé, cada noite mal-dormida. A sensação de estar a gerar vida é qualquer coisa de fenomenal. O F facilitou imenso a tarefa, porque foi um embrião/feto/bebé muito calmo e rotineiro. Não tive enjoos, a azia apareceu apenas nas últimas semanas e o refluxo era um problema que não era novidade para mim. Tudo a correr como um sonho, considerando que se tratava da minha (nossa) primeira gravidez.
O que não esperava era o efeito que a gravidez tem nas pessoas que nos rodeiam. As aulas de preparação para o parto não nos falam nisso, nem tão pouco nos preparam para as  histórias que decidem contar de algo que correu mal, mas que "não te vai acontecer, certamente"!

Ainda estava a viver a fase inicial do choque da notícia quando surgiram os primeiros "intervenientes". A notícia teve que ser mantida em segredo pela sensibilidade que representam as primeiras 12 semanas. Mas, como trabalhadores independentes, tínhamos que salvaguardar a pausa que o momento exigia. O meu chefe do hospital foi o primeiro a ser comunicado e logo se encheu de conselhos e avisos como bom recém-pai. Talvez pelo facto de sermos o primeiro casal com quem poderia partilhar tal sabedoria, já que tinha sido recente a sua paternidade e não tinha ninguém no seu grupo a quem aconselhar, não se inibiu de ser curto e direto. "A vida como a conhecem acabou!" foram as suas primeiras palavras, seguido prontamente de um "mas vai valer a pena". Ora, se a notícia má vem em primeiro lugar, dificilmente conseguimos concentrar-nos no que de bom possa vir de seguida. Lembro-me que pensei imediatamente que a maternidade talvez não fosse tão mágica como esperava e que ter um filho fosse obra do Diabo. Mas, carago, não podia ser assim tão mau! Ou seria? A verdade é que essa máxima foi repetida em todos os encontros posteriores, sempre com muito ênfase... tanto no bom, como no "mau".
Após os devidos anúncios às chefias, tivemos algum tempo em que digerimos a gravidez em privado. Esse período permitiu-nos acalmar, organizar a nossa vida e.... sonhar! Sim, porque sonhar é uma parte importante de pais de primeira vez. Ainda que comedidos, estávamos ansiosos e muito, muito felizes.

Quando terminou a "quarentena", a escolha óbvia recaiu sobre os nossos pais. No lado do Z, tratava-se do primeiro/a neto/a e a reação foi fabulosa! Estávamos a concretizar os sonhos dos recém-avós! Os meus pais, embora avós de quatro, tiveram uma reação inédita, porque se tratava da filha (princesa!) deles. A distância ficou preenchida por lágrimas de felicidade pura.
Deu-se, então, início a uma série de encontros e de chamadas a informar todos os que nos amam e que nos querem bem, da grande novidade. Neste círculo, sentimo-nos protegidos, amados e amparados para a responsabilidade que se avizinhava.
Quando a notícia chegou ao círculo mais externo, nomeadamente a colegas de trabalho, conhecidos e familiares distantes, aí começou a paródia!


Dos temas mais abordados na sabedoria popular, o parto bate qualquer tópico. Desde rasgões até às pernas, bebés com a cabeça torta ou deformada, ou mesmo descuidos na sala de parto, vale tudo! E não deixa de ser incrível como a pessoa que nos conta tem sempre alguém conhecido que passou por uma situação rara e complicada.
Lembro-me particularmente de uma colega que me falou que conhecia "uma rapariga" a quem os médicos tiveram que cortar até à perna para conseguirem tirar o bebé. Este "desabafo" seguiu-se a ter dito que estava nervosa com o parto! Boa!! Que bela maneira de acalmar alguém que não sabe para o que vai, embora saiba que pode ser difícil! Como ela, muitas foram as histórias de "uma amiga minha" ou de "uma tia da minha mãe" que fazem arrepiar os pêlos do rabiosque (desculpem-me a expressão, mas não é para menos!) e que em nada contribuem para preparar uma mãe para a difícil tarefa que é deitar o filho cá para fora.
Ouvi relatos de ferros espetados em sitios menos próprios, de médicos com mãos a mexer - lá está - em sítios menos próprios... Porque, diga-se em abono da verdade, o parto gera-se em torno de um sítio menos próprio! Se gosto de manter o "sítio menos próprio" só meu, escutar tamanhas barbaridades deixou-me menos confortável.

Depois seguem-se os problemas pós-parto: desde mamas a jorrar sangue durante a amamentação, a noites em branco durante todo o primeiro ano de vida.... you name it, we've got it!
Tive uma amiga que decidiu não amamentar o segundo filho. Eu respeito muito a sua decisão agora que passei por isso. É uma responsabilidade assoberbadora e que exige muito da mãe. Foi das escolhas mais difíceis que tive da fazer nas primeiras horas após o parto. A enfermeira C que me acompanhou no pré e pós parto - a quem agradeço do fundo do coração todo o apoio e sabedoria partilhados, e, acima de tudo, o carinho - não se cansou de falar precisamente das exigências da amamentação. Mas estes foram relatos construtivos e preciosos. Não como aquele em que me disseram que tinham ficado com o mamilo desfeito e cheio de cicatrizes (bela imagem da amamentação) ou, mesmo, a história da "amiga" que ficou com uma mama maior que a outra.
Se o corpo já sofre uma transformação radical, não há necessidade de adicionarem pinturas de Picasso à imagem mental que uma pessoa vai construindo.

No estado mental normal, estes relatos são filtrados e colocados de parte como informação sem relevância. Na gravidez, altura em que as hormonas fazem uma bailarico constante que nos coloca numa montanha russa emocional, estas informações apoderam-se da nossa vivência diária e ganham um papel preponderante.

Posto isto, quero agradecer todas as pessoas que partilharam as suas histórias Hitchcockianas: pelo medo que me instigaram, levando a uma preparação mental para a gravidez que nem campo de treino dos fuzileiros; pela antecipação que geraram, fazendo com que organizasse um mapa mental de tudo o que poderia acontecer; mas, acima de tudo, pela imagem que contruíram, porque fizeram com que a verdadeira tarefa de parir e de ser mãe pareça a função mais fácil do mundo.
Não vou mentir - tivemos uma sorte enorme com o F., porque é o ser mais sociável, bem-disposto e colaborante que podia imaginar. Mas a paciência, a compreensão e a sabedoria, essas vieram dos relatos que nos prepararam para o pior e que, na verdade, continuam a ser aquilo que são: "histórias que uma amiga minha me contou"!

Beijo,
J

terça-feira, 14 de março de 2017

A reviravolta de uma vida - Parte II

As notícias que me afastaram tanto tempo da escrita não podiam ser mais variadas. Respeitam diferentes áreas da minha vida e implicam diferentes graus de empenho. O que leva à segunda novidade: um novo emprego!

Não me considero uma pessoa desmedidamente ambiciosa. Gosto do que faço e quero sempre melhorar o meu conhecimento e adoro quando me são colocados desafios. Talvez concordarão comigo que, quando uma pessoa faz a mesma coisa muito tempo, estagnamos e não evoluímos. A verdade é que trabalho em contexto clínico há algum tempo, mas este desafio profissional foi um sonho que guardei muito tempo e que veio na altura certa.

A proposta inicial era entrar num grande grupo e introduzir o conceito de minha área numa perspectiva nova e fresca. Inicialmente, seria trabalhar na minha especialidade, mas com os métodos e as regras inteiramente decididas por mim. Como disse, um sonho! Mas, como em todos os sonhos, existe um senão escondido e a minha peripécia não foi excepção.
As primeiras reuniões correram muito bem. Os "chefes" estavam receptivos às minhas ideias e tudo estava a ser aceite. Antes de apresentar serviço, já estava a receber elogios. Contudo, ainda faltava "colocar a mão na massa"!

Depois de um interregno esperado para aprovação oficial, eis que surge o primeiro "contratempo": afinal iria trabalhar numa área diferente - quase oposta, para ser sincera -, mas seria um primeiro passo para atingir a especialidade pretendida. Segundo eles, era o meio para atingir um fim.
Continuei o trabalho e arranquei dois meses depois, na especialidade que me colocaram e com muitas limitações.

Antes de avançar, gostaria de fazer uma pequena ressalva: desde que terminei o curso, tenho uma opinião muito clara sobre o conhecimento geral do que eu faço: a minha profissão, embora extremamente importante em todas as áreas da vida de uma pessoa, é um caixote de lixo dentro da área da saúde! Ninguém sabe o que é, ninguém percebe onde se encaixa, ninguém sabe quando se aplica e desconhecem a sua pertinência. Todavia, quando falo com colegas de saúde - e já falei com muitos - todos respondem que conhecem muito bem o meu trabalho. Pois bem, a verdade é que estão errados. Baseiam as suas opiniões em senso comum infundado e, com essa ignorância, prejudicam toda e qualquer necessidade de estar em clínicas, hospitais e centros de saúde! O meu trabalho torna-se difícil devido à ignorância daqueles que se auto-intitulam de "senhores doutores".

Regressando ao meu relato, dou por mim a trabalhar numa equipa em que ninguém sabia o que eu estava ali a fazer. Chegaram a inventar funções para que eu estivesse "ocupada" e sempre com a arrogância de conhecerem muito bem a minha profissão. Perante estes contratempos, nunca baixei os braços e nunca me deixei derrotar. Tive conversas mais acesas com colegas, reuniões de engolir sapos e até tive que chamar atenção aos "senhores doutores", mas persisti.
Não foi fácil, não vou mentir. É necessário arranjar forças que, por vezes, nos faltam e ganhar a motivação para encarar todos os dias com um olhar refrescante, mas a minha persistência prevaleceu.

Passados 3 meses, posso dizer que o projecto estava a andar sobre rodas: tinha uma auxiliar destinada a dar apoio; já tinha um papel definido e correto dentro da equipa; a classe médica reconhecia a minha existência; e, o mais importante, os utentes e seus familiares estavam a notar diferença. Sucesso! E um sucesso que se materializou na contratação de mais uma colega. Senti-me realizada e muito orgulhosa!
Passados outros 3 meses - 6 desde o início do desafio -, o serviço estava perfeitamente sincronizado e todas as áreas funcionavam em harmonia. Tinha conseguido!

Uma profissional reconhecida no grupo, com o projecto a ser reproduzido nas restantes unidades hospitalares e com o sucesso a manter-se! É a concretização de um sonho..................... OU NÃO!
A verdade nua e crua é que o projecto efetivamente está a ser um sucesso e que está a ser utilizado nas outras unidades hospitalares, mas eu? Eu fui dispensada! Afastei-me do trabalho pelo melhor motivo da minha (nossa) vida - gravidez - e quando regressei, tinha perdido o meu lugar!
Todo o meu trabalho, todo o meu empenho, toda a minha persistência, toda a minha resiliência não serviram para absolutamente nada! Como me ausentei para ser mãe (uma pedra no sapato que ainda incomoda muita gente nos dias de hoje!), eles acharam que qualquer outra pessoa poderia fazer o mesmo trabalho e que eu, a mentora do projeto, poderia ser dispensada!

A minha tristeza resulta apenas e somente de uma simples conclusão: vivo numa época em que não se valoriza a criatividade, a pro-atividade, nem a resiliência! O que este grande grupo médico fez não foge ao que os grandes grupos e empresas fazem ao trabalhador que produz: tratam-nos como números e como matéria-prima barata que, ao sinal do menor problema, é substituída por uma peça nova. E, ao que parece, a gravidez ainda é um "pequeno problema" nas mulheres trabalhadoras! Somos pagos como se fizessem caridade e sob o pretexto de "haver quem queira, caso eu ache pouco"! Rejeitam quem se atreva a remar contra a maré e promovem os bufos, os bajuladores e os passivos.

Tive que dizer aos meus pais que tinha sido transferida de unidade, porque a vergonha é avassaladora.
Hoje, partilho com vocês a dor que me atormentou nestes últimos 10 meses. Já chega de silêncio.

Pena que, passado quase 2 anos exactos, a minha queixa não seja muito diferente do artigo que redigi em Fevereiro de 2015, "Um desabafo nada original".
Desculpem-me se estou repetitiva. Talvez ainda acredite que isto vai mudar.

Até breve
J

domingo, 29 de janeiro de 2017

A reviravolta de uma vida - Parte I

Regresso após tanto tempo, porque me deixei levar pela vida.
Neste último ano e meio, a minha (nossa) aventura sofreu alguns desvios de rota - maioritariamente positivos - e roubou-nos algum tempo para dedicar a este cantinho.
Mas quis regressar, porque também tenho saudades de escrever o que me vai na alma.

Esta mensagem deve, portanto, começar com um grande pedido de desculpas. Pela ausência, pelo hiato temporal e pela separação entre nós - bloggers e leitores.

Desculpem.


Feitas as devidas formalidades, passemos ao assunto, ou melhor, aos assuntos que justificam tanto tempo longe.

Acredito que existem momentos na nossa vida que nos marcam para sempre. Não precisam de ser grandes alaridos ou episódios memoráveis de uma novela real. Basta que sejam atitudes sentidas reveladas num exacto instante quando isso só, basta para a tua vida ganhar rumo.

O meu primeiro momento acontece no último dia de trabalho antes de umas (merecidas e esperadas) férias. O calor já se fazia sentir, embora ainda não houvesse bronzeados a marcar a época.

Para celebrar esse marco, o Z decide convidar-me para jantar no Guedes - para quem conhece o Porto, sabe que este é o restaurante das famosas sandes de pernil com queijo da serra, acompanhado por um Espadal da casa - para o lambuzanço ser total. 
O dia apresentava-se magnífico, pelo que havia planos de ir ao jardim de São Lázaro, para sentar e apreciar a digestão de semelhante pecado gastronómico, apreciando a restante luz do dia e a brisa por entre as árvores. Infelizmente, o horário de fecho do Jardim trocou-nos as voltas e sugeri uma paragem na minha casa de gelados de eleição: La Copa.

Uma vez que estávamos em modo férias, não me poupei a nada. Pedi o maior gelado que havia e até tive direito ao hino da Liga dos Campeões quando o Z trouxe a taça.

[Se me perguntarem hoje se desconfiava de alguma coisa, não vou mentir: NÃO! Notei que estava nervoso, mas não dei muita importância!]

Mal termino a taça de gelado, ele começa a falar sobre nós e sobre a nossa relação. Como óptimo orador que é, transforma a nossa história num conto de fadas maravilhoso e eu deixo-me levar pelas suaves palavras. Entretanto, tira de dentro da sua mala uma caixa de jogo e coloca-a em cima da mesa. Espantada, pergunto se vamos jogar ali em plena esplanada e a sua resposta dá início aquele que seria o momento mais romântico da minha vida: 
o Z tinha preparado um "jogo" diferente e, para isso, arranjou cartões personalizados na mesma medida das cartas do jogo, com ilustrações que deram vida ao pedido. Ele contou a nossa odisseia desde o primeiro dia, com percalços e gargalhadas, até ao sonho de uma vida inteira a dois representado por dois velhinhos de mãos dadas e pediu para concretizar esse sonho.
Abriu uma caixa pequenina vermelha - aquela que nós, mulheres, sabemos que retém todo o pedido esperado desde a descoberta do amor - e perguntou, já a fraquejar: "Queres casar comigo?"
Antes de poder responder, um soluço apoderou-se de mim e as lágrimas de alegria jorraram pela minha cara, denunciando o meu sim. 

Há pouca coisa da qual tenho a certeza. Mas ali, naquele momento, não havia dúvida nenhuma na minha mente de qual seria a minha resposta.

Ao meu soluçado sim seguiram-se algumas lágrimas dele e um beijo que selou a beleza daquele momento. Foi bonito, foi sincero, foi real. Foi nosso!!!

Esse dia marcou um novo início na nossa vida. Parece que ficámos mais apaixonados, mais verdadeiros e mais dedicados. 
Embora considere que uma relação não se faz num papel assinado ou numa aliança no dedo anelar, estas mostras de amor são sinais de que duas pessoas estão preparadas para um novo grau de desafio e para um comprometimento mais forte. Afinal de contas, um casamento é um contrato legal que obriga ambas as partes ao cumprimentos de direitos e deveres, assinado com plena consciência do seu valor e durabilidade. Portanto, convém que a malta saiba no que se está a meter antes de assinar o papel!!
Eu e o Z reconhecemos a importância da decisão e queremos tomá-la sem hesitações.

Por motivos de ordem financeira, até hoje não houve a bendita celebração! E não pensem que seja porque queremos uma mega festa, com um vestido de noiva espampanante ou um smoking à medida! Não é essa a nossa ânsia! A celebração tem sido adiada, porque queremos proporcionar um ambiente memorável para nós, para a nossa família e para os nossos amigos! Queremos que as pessoas se recordem do amor que se sentiu nesse dia, da alegria que os noivos sentiram e do orgulho que todos sentiram em presenciar a nossa união. Para nós, o casamento é a celebração do amor entre duas pessoas e nada mais. Cortem o catering, cortem o vestido de marca, cortem o fraque em cetim, cortem a entrada sobre um arco de rosas, cortem os vestidos das mães dos noivos, cortem os penteados de 50€. Simplifiquem! Queremos uma cerimónia simples, mas verdadeira como nós! Infelizmente, o negócio do casamento é muito rentável e os espaços que temos vindo a visitar são lindos, mas pagos a peso de ouro. Depois, seguem-se as ementas elaboradas com comida gourmet e com ingredientes estrangeiros muito chiques, as decorações personalizadas, os empregados de alto gabarito, a distribuição do espaço, a escolha das bebidas, a duração da cerimónia.... uma panóplia de must-haves que acrescem ao preço e que tornam os nossos sonhos praticamente inacessíveis.
Podemos sonhar, mas a um valor astronómico por pessoa!

Pois bem, nós ainda estamos na fase de sonhar... pelo menos até este negócio ficar mais acessível ou ganharmos o euromilhões!!

Depois desse momento, seguiu-se mais uma nova aventura na minha vida pessoal e profissional. Uma proposta daquelas que nos faz vacilar, mas que, depois de aceite, pode ser a nossa marca num percurso profissional de sonho.
Não percam a segunda parte.

Beijinhos e até já
J