domingo, 10 de setembro de 2017

Escolher viver

Em 2003 Aron Ralston, um entusiasta das escaladas e das caminhadas na Natureza deu por si numa prova de sobrevivência e resiliência inusitadas, quando numa das suas aventuras de escalada e caminhada pelas montanhas rochosas do Utah a queda duma pedra o deixou preso pelo braço, numa fissura estreita duma das rochas, apenas à espera da morte. Após cerca de 5 dias de reclusão, e já praticamente convencido de que seria ali que daria o seu último suspiro, Aron finalmente conseguiu levar a cabo a amputação do seu próprio braço e salvar-se de forma aparentemente milagrosa dum destino que parecia traçado à partida. Sobre o acontecimento, recomendo a leitura do livro "Between a Rock and a Hard Place" ou o visionamento do filme "127 hours" para melhor se perceber a magnitude da história. Mas há duas frases de Aron, quando entrevistado pelo The Telegraph acerca do evento, que me tocam particularmente:

"I felt reborn, because I was sure I was going to die" - "Senti-me renascido porque tinha a certeza de que ia morrer"
"It was traumatic, but it was a blessing to get out of there" - "Foi traumático, mas foi uma bênção sair dali"



Para que não restem dúvidas, eu não faço a mínima ideia do que é estar tão próximo da morte e conseguir lutar e resistir desta forma. Não calculo o que poderá passar pela cabeça dum indivíduo quando, preso por uma pedra de 360kg e sabendo que vai morrer, a ideia de amputar o próprio braço se afigura como a única saída possível, nem consigo sequer imaginar que um momento duma crueza tão violenta possa ter um siginificado tão impactante como um "resnascer" ou uma "bênção". Para ser honesto, não consegui sequer manter os olhos abertos durante o filme na parte mais gráfica de libertação de Aron, e senti alguma fraqueza nas pernas a cada tentativa falhada de corte das estruturas anatómicas em torno do antebraço. 

Colocadas e recolocadas as devidas distâncias, encontro em toda a história de Aron uma metáfora "quase" perfeita para o que têm sido os últimos 2, 3 anos da minha vida (especialmente o último ano e meio). 


A rocha de 360 kg

Julho de 2016: chega ao fim mais uma semana louca de trabalho, e lá vou cada vez mais vergado ao peso de tudo o que teimava (e teima) em cair sobre as nossas cabeças. A conta do banco periclitantemente a caminho dos mínimos, ainda com contas por pagar e já quase sem capacidade para fazer umas compras sem ter de contar e recontar todos os cêntimos de tudo o que pode ir para casa. "Teremos dinheiro para este fim de semana?", "Será que é desta que me aparece A carta da SS a dizer-me que me vão penhorar a conta?", "Teremos capacidade para nos manter a viver nesta casa quando o F nascer?"; foi com estas e tantas outras questões na mente que me deitei para tentar, em vão, adormecer e foi nisto que acordei a pensar noites e dias a fio. Pelo meio, tentar convencer a J de que tudo estava perfeitamente bem e que ia correr bem, e convencer os meus pais e amigos mais próximos de que não era necessário preocuparam-se em ajudar-nos uma e outra e outra e mais uma vez. Mas era e, felizmente para mim, eles sabiam disso (e disso falarei mais tarde). 

"Bater no fundo", uma expressão tão utilizada por tanta gente, não é bem a parte pior do que nos pode acontecer durante uma queda. Quando o fundo não está ainda ali, está mais abaixo mas não sabemos bem onde, é quando as coisas se complicam. Sabemos que há fundo, queremos muito lá chegar para pelo menos saber "Porreiro, pior do que isto já não pode haver!", mas acabamos enredados numa areia movediça, ali apenas com o nariz de fora que nos vai permitindo sofregamente uns tragos de oxigénio. Estar nessa areia movediça provou-se ser a parte mais complicada de gerir de todo o processo: deixar de atender chamadas de números desconhecidos, de ver o e-mail ou até ter medo de abrir a caixa do correio, porque pode ser alguém a dizer-nos que está qualquer pagamento em atraso e sabemos que assim se vai manter. Deixar de ver o saldo da conta bancária com medo de ver tornado real o descalabro a acontecer mesmo em frente aos nossos olhos. 

Estar neste fundo muda-nos, infelizmente, para pior. Tornei-me mais reactivo e menos paciente. Tornei-me algo mais duro e muito fechado. Dias houve em que senti que não dava para mais; não tenho problemas em dizê-lo, talvez pela primeira vez em público: cheguei a pensar não aguentar nem mais um dia assim. Não deixei de lutar por um segundo que fosse, mas foram inúmeras as alturas em que tudo o que mais queria era enviar tudo para o caralho, fosse lá o que isso fosse. 

Depois vem o rancor e a raiva: durante meses a fio sonhei, acordado e a dormir, em perseguir, torturar e, se possível, esbofetear sem parar para respirar os principais responsáveis por este buraco sem fim em que se tornou este espetáculo de sobrevivência a que várias gerações têm estado sujeitas nestes últimos anos. A verdade é que todos somos culpados, todos somos cúmplices do estado de coisas. Uns por irem aceitando tudo o que vai aparecendo e acontecendo, até porque não há outra solução; outros por conseguirem dormir à noite sabendo que se aproveitam do desespero das pessoas nesse sentido. Outros por calarem a boquinha e assobiarem para o ar porque a vida lhes corre bem e o problema não é deles; alguns por ainda acharem que por haver 2 casos de sucesso em milhares de tentativas, a culpa é nossa por não sermos empreendedores; de todos nós, por nos calarmos perante alarvidades como a que fizeram à J (como ela contou nos posts anteriores), mesmo sabendo que há veículos próprios para tratar esses casos. Na minha actividade profissional, devo ter tido centenas de pessoas revoltadas com a precariedade e condições de ameaça velada a que estamos sujeitos; ZERO, foi o número de pessoas que fez uma queixa a quem de direito. É muito bonito estarmos do lado certo da barricada, Calimeros a vociferar que isto é uma injustiça, mas não me recordo que a compaixão resolva seja o que caralho for. O nosso problema não são as crises financeiras; o nosso problema é mantermos o bom hábito português de continuar a olhar para o nosso umbigo quando estamos rodeados de filhos da puta, criticar os filhos da puta e criticar quem lhes ousa fazer frente. Falar muito e fazer pouco, muito pouco. Esperar que tudo apareça feito. 

Esta foi a pedra de 360 kg que durante cerca de 3 longos anos nos manteve bem presos naquele buraco fundo das montanhas rochosas. 

Naquele dia de Julho de 2016 cheguei, finalmente ao meu limite.


A amputação

"J, vou começar a preparar a papelada para irmos para França para o ano". 
Já não era a primeira vez que tinhamos esta conversa lá em casa; já antes estivemos muito perto de embarcar numa aventura por terras de Sua Majestade, e já por várias vezes nos tínhamos arrependido de não o ter feito. 
A decisão era muito simples: ficar debaixo da pedra e ir morrendo lentamente, enterrarmo-nos uns milímetros mais a cada dia que passasse, e arrastar todos os que nos são mais próximos connosco (incluindo o F); cortar o próprio braço, sair da nossa casa, do sítio onde sonhámos que iríamos construir a nossa vida e partir. Sobreviver ou viver. Escolhemos viver, ainda que para isso tenha sido necessário amputar o braço.

Recordo-me, quando começou o êxodo de profissionais de saúde para terras francesas e inglesas, de pensar estupidamente que isso talvez fosse precipitado; achei que trabalho árduo, boa capacidade técnica e boas qualidades pessoais vão sempre acabar por nos trazer alguma recompensa. Isto é válido para outros países no Mundo, que não Portugal. Vamo-nos apercebendo que para a maioria de nós, a única recompensa que pode surgir é o recnhecimento dos que tratamos e dos que connosco trabalham, dos que nos conhecem. Repetindo o que já disse acima, não me recordo que seja isso que nos coloca comida na mesa.

Sair do país foi algo que nunca me passou pela cabeça enquanto cresci, e que não mudou assim tanto mesmo com uma aventura de Erasmus ali pelo meio. Os laços que fui construindo em 30 anos dentro e mesmo ao lado da cidade do Porto sempre me deixaram com uma vontade férrea de lá passar toda uma vida. Jantar às sextas-feiras e sábados á noite no Guedes, ou na Badalhoca, ir beber um copo ali ao Piolho. Passar serões com os amigos duma vida e respectivas esposas/companheiras e igualmente amigas, ao redor duma mesa e duns bons jogos de tabuleiro. Ver os nossos filhos crescer, e a tornarem-se também amigos. Levar os meus filhos ao Dragão e passar-lhes esta saudável doença de amar sem fim um clube e uma cidade. Levá-los ao andebol, e fazê-los crescer com os valores de honra, espírito de grupo e amizade que o desporto me trouxe, pela mão do meu pai. Ir aos domingos aos almoços em casa dos meus pais, numa mesa cada vez mais cheia de netos. Estar lá presente para vivenciar os merecidos anos de reforma e descanso deles. Acompanhar a vida do meu irmão, os primeiros passos no mercado de trabalho e assistir aos jogos dele. Ter a família por perto, doida varrida, mas sempre com laços de betão. Primos, tios e avós.

Não vou poder sentir de perto os meus amigos de quase 21 anos; o meu filho vai crescer a saber quem eles são, mas eles não vão estar ali a 5 minutos de carro como estiveram quase sempre. Não sei se vou poder celebrar com eles como eles celebraram comigo a notícia de que vão ser pais. Não vou poder estar fisicamente todas as vezes que queria estar com os meus avós, tios e primos. Não sei quantos meses passarão até estar outra vez com o meu irmão. Não sei se consigo que os meus sogros possam estar tantas vezes como queríamos connosco e, especialmente, com a J e com o F. Vai fazer-me muita falta estar com os meus companheiros do andebol. O cheiro do balneário, as marcas de guerra, as jantaradas e as viagens ao cu de Judas para jogar num sábado às 21h. E as conversas com o P, possivelmente uma das únicas pessoas de quem me sinto verdadeiramente amigo, mesmo que estejamos politicamente, ideologicamente e clubisticamente em lado diferentes da "barricada". Os jantares e serões com os "padrinhos", aqueles seres maravilhosos que tivemos a sorte de conhecer. Saber como anda a vida do nosso filho adoptivo, o S. Saber se ele está bem ou se precisa duma noitada de sobrinho e de jogos de tabuleiro para libertar aquela cabeça.

E se algum dia acontece alguma coisa com algum deles? Será que a última vez que abracei os meus pais foi com a intensidade suficiente? Será que, mais do que lhes dizer, lhes fiz sentir como me sinto eternamente agradecido por tudo aquilo que eles têm feito por nós? Será que vou continuar a conseguir completar as frases do P e do M? Será que vou conseguir estar sempre lá para ajudar aquela cabeça complexa do meu irmão a perceber o valor enorme que tem? Quantas coisas ficarão por dizer, não pelas video-chamadas nem pelos facebooks, mas frente a frente? Quantos abraços ficarão por dar? 

Foi tudo isto que tivemos de aceitar cortar para seguir em frente. Foi este o braço que ficou debaixo daquela pedra. Bem sei que os tempos são outros, que as tecnologias nos aproximam, etc, etc, etc, mas isso é uma conversa espectacular para quem não passa por isso. 

Viemos e estamos bem. Estamos óptimos, como não me lembro de alguma vez termos estado. Pese embora toda a complexidade dum processo de mudança de país, dificilmente poderíamos estar melhor. Fomos recebidos principescamente pelos incansáveis C e T, temos tido no R e na D uma pequena mas sólida rede de conforto. Uns e outros têm tido connosco uma atenção e um espírito de ajuda que ficarão para sempre marcadas na nossa memória. Adaptamo-nos bem e, principalmente, o F adaptou-se lindamente. Estamos finalmente a conseguir viver sem ter a pressão dum calhau de 360kg a esmagar-nos o braço. 


Dormimos em paz. Estamos em paz. Sentimo-nos renascidos e abençoados, como Aron, por termos escolhido viver.


Mas.... falta-nos um braço!