sábado, 3 de maio de 2014

Nós, continentais

No dia em que conheci a J, disputava-se uma final da Taça de Portugal na qual o meu clube do coração levou na boca, sem dó nem piedade. Atendendo ao meu estado de espírito no dia em questão, embora consideremos sempre esse dia como O dia em que nos conhecemos (e em que trocámos números de telemóvel), tenho de admitir que a dor de estar a perder o jogo (roubadinho, nossa senhora!), e o facto de estar a tentar magicar um plano para ir num instante ao Estádio Nacional, atropelar "acidentalmente" o Rodrigo Tiuí (nome do gajo que nos marcou 2 golos), me toldaram um pouco o raciocínio. Mas aqui o Z não dorme em serviço, e fiquei com a menina J debaixo de olho.

Mais tarde, depois de umas mensagens trocadas, surgiu a oportunidade de estarmos juntos. Depois de nos livrarmos da malta que nos acompanhava nessa noite (que chatos!), e de ter soltado um surpreendente "Enfim sós!" - que deixou a J a pensar se havia de ligar para a polícia ou continuar comigo no mesmo espaço - tivemos um bocadinho para falar, finalmente, à vontade, sem pressas, sem horas marcadas, sem preocupações.

E é nesta altura que, caros leitores, cometi erros que, se algum dia namorarem com um(a) açoreano(a) não podem cometer. Mesmo!

Pergunta-me a J "De onde é que achas que eu sou?". Fiz aquela cara de quem é muito entendido na matéria, e pensava para comigo "Sei lá!! Ela de vez em quando usa o gerúndio... Poderá ser alentejana? Não tem sotaque muito acentuado... Também poderia ser lisboeta, ou conimbricense... Bom, vou arriscar: És alentejana!". A J sorriu, abanou a cabeça em sinal de negação, e quis que tentasse de novo. E tentei "Lisboa?". Também não... "Sou açoreana, da ilha do Pico.", disse-me, com a maior naturalidade do mundo. As quatro palavrinhas que proferi de seguida, atentem bem, poderiam ter alterado muita coisa na nossa história de vida. Sempre que conhecemos outra pessoa, seja em que circunstãncia fôr, temos UMA oportunidade para causar boa impressão. Se não a utilizarmos convenientemente, podemos ir "metendo a viola no saco", e abandonar o local, sem olhar para trás. Respondi-lhe "Mas não tens sotaque!"... PUMBAS, em grande caro Z! A expressão da J mudou num piscar de olhos. O olhar, outrora simpático e sereno, tornou-se tenso e assassino. Posso jurar que vi faíscas a saltarem das glândulas lacrimais, e que todos os músculos da face se retesaram ao mesmo tempo. Verbalizou: "Sotaque, têm os micaelenses...", de forma fria, quase crua. Percebi logo ali que estava em sarilhos, e não havia wingman que me pudesse valer. Revi sumariamente toda a conversa até então, procurando ter um porto seguro onde regressar para me safar daquela trapalhada, e evitar o meu provável (e justo) espancamento, após tão vil incidente diplomático. Mas J continuou "... Ou também és dos que acham que os Açores se resumem a S.Miguel?". Pensei logo "Não tenho volta a dar, não há desculpa esfarrapada que me valha.". Desculpei-me pelo meu deslize, tentei amenizar a situação com piadolas, mas a facada estava dada, e a ferida resultante ficou ali, aberta, sangrenta, daquelas que nos impressionam e que até tentamos esconder da vista, mas para a qual acabamos sempre por olhar fixamente, com repugnância. Fiz M***A da grossa, mas vou tentar dar a volta por cima. A J, ainda com ar de quem se prepara para dar a paulada no cachaço do coelho, decidiu pôr-me à prova: "Ao menos sabes quantas ilhas fazem parte do Arquipélago?". "São 9!", respondi, dando graças a todos os santos que conheço (felizmente são poucos), por me ter sido concedida a oportunidade de mostrar sapiência e marcar um ponto positivo (e começar a recuperar dos 100 pontos negativos da brincadeira anterior). "E quais são?", perguntou J. Afinal ela estava a testar-me. Primeiro a pergunta simples, para me dar alguma confiança, para logo a seguir me encostar a pistola á têmpora. Fiz um esforço por começar a pensar em todas as ilhas que não S.Miguel. Pico, claro está, Faial (velha conhecida dos tempos do andebol), Santa Maria (igualmente por causa do andebol), S.Jorge e Terceira.... S. Miguel (olhar cortante por parte da inquiridora)... E bloqueei! Faltavam-me 3! Vergonhoso... Percebeu-se no meu olhar que a fonte da sabedoria estava tão seca como a maioria das minhas piadas, e foi a J que adicionou Flores, Graciosa e Corvo, com o maior desdém que um açoreano pode ter por um continental que não saiba de cor as ilhas do mais belo arquipélago da galáxia (5 pontos positivos para o Z?).
Pensei que tinha borrado a pintura de forma permanente, e que a minha história com a J terminara naquele instante... A verdade é que ela foi uma fofa. Conseguiu perdoar a minha ignorância, e ainda se divertiu mais um pouco com a minha aflição, quando questionou "Sabes em que grupos se dividem as ilhas nos Açores? É fácil, todos os dias se fala nisso no telejornal, na meteorologia...", e eu, que vejo religiosamente telejornais, não soube sequer começar a responder.

A conversa prosseguiu, regressando à toada de paz inicial, toda envolta naquela excitação de estar a conhecer uma pessoa nova, e dar-lhe a conhecer aspectos da nossa vida. Acho que terá sido essa excitação que me fez deixar passar o "Sou benfiquista." com que fui brindado, sem ter tido um ataque cardíaco, agora que penso nisso... Mas tudo ficou melhor, até que disse a segunda pior coisa que podemos dizer a um açoreano (micaelense ou não). Afirmava a J, "Lá nos Açores...", e completou com algo relacionado com a sua terra natal. Poderia ter respondido "Aqui no Porto..." e completado com algo relacionado com a minha terra natal? Sim, poderia e deveria! Mas foi um "Aqui em Portugal..." que me saiu boca fora. De novo a expressão serial killer voltou aos traços da J. "Com que então Açores não faz parte de Portugal?", atirou-me, secamente, como que disfarçando a ofensa que a minha frase provocou.

E foi assim, com duas saídas fenomenais que me estreei na vida da J. Ainda hoje não consigo perceber como isto deu certo. Ou eu sou realmente um ser humano extraordinário (opção que eu próprio, desde já, coloco de parte), ou é a J que revela um sentido de compaixão que deixaria muito boa gente de queixo caído. E realmente gosta de mim. Mesmo eu sendo um continental, que no primeiro contacto mais sério com uma açoreana picarota conseguiu cometer duas gaffes imperdoáveis. Amigos(as), procurem evitar cometer estes erros: eu sei que tive sorte, mas sei também que poderia ter facilmente terminado a noite à porta das Urgências, com uma fractura do osso malar, e sem 3 ou 4 dentes.

Atenção às aulas de geografia e á parte da meteorologia no Telejornal: as ilhas estão divididas em grupos que são todos diferentes (pese embora as temperaturas e a imagem de céu nublado dadas pela meteorologia serem iguais durante todo o ano).




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4 comentários:

  1. Quero a historia do toblerone!! xDDD

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    1. Esse será um post futuro, uma vez que exige muita reflexão e cuidado! Obrigada pela visita. Beijinho

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  2. Foi um prazer "ouvir" pela segunda vez esta história! Passarei cá mais vezes :)
    Beijos para os três (não me esqueço da cagona da P) :D

    AM

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    1. Se foi um prazer "ouvir" histórias conhecidas, lanço o desafio para histórias por desvendar! Beijinho e até breve!

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